“Pediu-me em casamento no dia em que me bateu pela primeira vez”


Conheceu-o no trabalho. Era inteligente, cavalheiro, sedutor. Um homem de sucesso. Começaram a namorar e os primeiros sinais de violência apareceram passados três meses: manipulação e chantagem emocional.

Ana Pinto, presidente da associação Voix des Survivant(e)s, sofreu violência doméstica durante 11 anos, às mãos de um homem com quem casou e teve um filho. Conseguiu libertar-se do agressor e hoje é novamente feliz. Mas o caminho foi longo. Escutada pela Rádio Latina, partilhou a história de terror que viveu. Hoje, em retrospetiva, sabe que o primeiro sinal de alerta surgiu nos primórdios da relação, quando ele a convidou para irem viver juntos aos três meses de namoro.

Começou ali a manipulação e acabaram por ir viver juntos. A seguir vieram os comentários sobre a roupa que vestia, as insinuações de que queria ir para a cama com colegas com quem trabalhava, os nomes feios e humilhantes. Estavam juntos há oito meses, já a morar debaixo do mesmo teto, quando lhe bateu pela primeira vez. Uma bofetada na cara, no dia em que a pediu em casamento.

A manipulação fez com que Ana acabasse isolada da família e amigos. “Ele chateava-se cada vez que eu falava com a minha mãe ou irmão ao telefone ao ponto de eu lhes pedir que não me telefonassem. Acabei completamente isolada”, conta.

Casaram nas Caraíbas, por iniciativa dele. “Ele apresentou-me a ideia como sendo romântica, mas hoje sei que o objetivo era que estivéssemos longe de toda a gente”, lembra. Pouco depois de casarem, Ana engravidou, mas os episódios de extrema violência não pararam e começaram também as ameaças de morte: “Batia-me na barriga até eu começar a sangrar e dizia-me que se eu perdesse o bebé, me mataria”.

“Dizes uma palavra e eu mato o miúdo”

Um dia, enquanto passavam férias no estrangeiro, Ana foi parar ao hospital, inconsciente, com um braço partido, costelas partidas e uma hemorragia cerebral. Tinha sido violentamente agredida pelo então marido, no quarto do hotel, à frente do filho de três anos.

A discussão no quarto surgiu depois de, pela primeira vez, Ana se ter insurgido contra o marido devido à forma como tratara o filho momentos antes.

No hospital, quando acordou, ele tinha dito aos médicos que ela caíra pelas escadas. Ana não disse palavra. Quando o médico se preparava para a levar para outra unidade do hospital para mais exames, o marido aproximou-se de Ana, deu-lhe um beijo na cabeça e, num sussurro ao ouvido, ameaçou matar o filho.

Foi todo este episódio que a fez “acordar do pesadelo”. Depois de voltarem ao Luxemburgo de avião, apesar de o médico ter desaconselhado que voasse, devido ao facto de ter sofrido uma hemorragia cerebral, numa ida ao hospital Ana conseguiu fugir para casa da mãe, levando o filho. Seguiram-se anos de luta nos tribunais, mais ameaças por parte do ex-companheiro. “Cheguei a ser seguida por um detetive privado que ele disse ter contratado”, conta. Depois descobriu também que ele colocara um GPS no carro dela, seguindo-a muitas vezes.

Passados muitos anos e muitos episódios de violência, o ex-marido de Ana Pinto acabou por ser condenado com pena suspensa, mas só depois de a portuguesa ter conseguido provar que ele agredira o filho. “Nunca viu o interior de uma cela”, diz Ana Pinto.

Os traumas

Já passaram muitos anos desde que o ex-marido lhe batia e ameaçava de morte, mas Ana Pinto continua a não conseguir dormir sem uma luz no quarto. Hoje com 49 anos, a portuguesa, que é presidente da associação Voix des Survivant(e)s (Voz da(o)s Sobreviventes, em português), é casada com um homem que a trata bem e com quem teve um segundo filho, uma menina. Voltou a ser feliz, dá apoio a outras vítimas de violência e luta por leis melhores. Chegou aqui após muitos anos de psicoterapia, mas há traumas que não a largam. E um deles é a razão pela qual não consegue dormir com o quarto escuro.

Quando o filho, que hoje tem 16 anos, era bebé, Ana trabalhava como enfermeira. Lembra-se de várias sextas-feiras. Chegava a casa do trabalho, ansiosa por ver o filho. Mal fechava a porta, o ex-marido arrastava-a pelos cabelos e trancava-a na cave, onde a deixava até domingo, sem comida, na escuridão, a ouvir o choro do bebé.

Violência doméstica fez 260 vítimas em 2023. Sessenta eram portuguesas

A violência doméstica fez 260 vítimas diretas em 2023, isto é, vítimas que as autoridades consideraram precisar de proteção. Entre o total de vítimas, 60 tinham nacionalidade portuguesa.

Segundo os dados extraídos do relatório anual do Comité de Cooperação entre os Profissionais da área da Luta contra a Violência, divulgado em junho passado, a maioria das vítimas – 204 – é do sexo feminino.

Ao todo, a polícia efetuou 1.057 intervenções por violência doméstica ao longo do ano passado, o que equivale a um aumento de 7,5% face ao ano anterior. No seguimento das intervenções dos agentes, 246 agressores foram retirados do domicílio, número que se manteve estável em relação a 2022.

Se foi vítima de violência doméstica, contacte imediatamente a polícia

Nem sempre é fácil ou possível, mas é esta a recomendação das autoridades: se foi vítima de violência doméstica contacte imediatamente a polícia ou dirija-se a uma esquadra.

Numa nota disponível no seu site, a polícia esclarece o que acontece após uma queixa. Começa por informar que “se a vítima for uma mulher, a polícia tenta, na medida do possível, que seja acompanhada por agentes mulheres”.

Se houver indícios de violência, a polícia pode proceder à expulsão do agressor do domicílio, mediante autorização do Procurador do Estado.

Durante todo o período em que está afastado do domicílio, o agressor fica proibido de entrar em casa, sendo-lhe retiradas as chaves. Se violar lei, arrisca-se a sanções penais. Nesta fase, cabe ao Ministério Público tomar uma decisão quanto ao seguimento a dar ao caso, que pode passar por levá-lo ao tribunal penal, abrir uma investigação ou arquivar o processo.

A partir do momento em que apresentam queixa, as vítimas de violência doméstica são acompanhadas e aconselhadas pelo Serviço de Assistência às Vítimas de Violência Doméstica em matéria de direitos e ações possíveis.

O Luxemburgo tem uma linha de apoio para vítimas de violência doméstica. O número de telefone é o 2060 1060 e o endereço de e-mail o info@helpline-violence.lu. Em caso de urgência, contacte o número de emergência nacional, o 113.

Artigo: Diana ALves | Foto: Gerry Huberty